(Artigo publicado no jornal Zero Hora, em 4 de junho de 2000.)
Fico triste ao ver um conterrâneo, cujos escritos tanto
respeito, entrar nesse vagão do ataque indiscriminado a tudo o
que se move ou tem valor, tão ao gosto deste fim de
século. Não tenho procuração para
defender Freud, nem preciso: sinto-me suficientemente incluído
no ataque para agir em legítima defesa. É verdade que
Décio se diz apenas reprodutor do resenhador de um certo
holandês Israëls, um outro Borsh-Jacobsen. Dito assim,
parece apenas uma briga de família, mas o que está por
baixo é o mais grave: trata-se de um ataque sistemático
e orquestrado contra os avanços do conhecimento sobre a alma
humana, previsto desde o início pelo próprio Freud.
Freud advogava o silêncio como resposta a estes ataques,
alegando não serem estas pessoas capazes de perceber a
extensão das verdades psicanalíticas por não
disporem da experiência pessoal, única forma capaz de
gerar convicção. Até por isto foi acusado de
incluir o “insight” psicanalítico entre as
revelações religiosas… Rebater uma por uma das
acusações de “mendacidade” de Freud seria tudo o que
estes detratores desejariam: ficar-se-ia discutindo a rama sem
penetrar no cerne. Poucos cientistas, em todas as épocas,
tiveram suas vidas tão dissecadas quanto Sigmund Freud.
Pode-se acusá-lo de tudo: de ingênuo ao se despir
tão completamente diante de seu público, única
forma de mostrar a universalidade dos seus achados sobre a
existência do inconsciente. De idealista, ao tentar a
solução de tanto sofrimento humano com tão
poucos instrumentos. De pretensioso, ao se perceber em um campo
inteiramente novo, onde só ele foi o desbravador, a ponto de
até hoje não se poder escrever sobre qualquer tema em
Psicanálise que não tenha sido ele o primeiro a
abordar, mesmo que superficialmente, de modo que se hoje
avançamos bastante, o foi sobre a base que ele deixou. Mas,
mentiroso? Porque pensava ser “cura” o que hoje percebemos como etapa
em um desenvolvimento sem fim? Ele mesmo foi extremamente pessimista
em seus últimos escritos, como “Análise
terminável e interminável”, quanto a possibilidade de
uma “cura” real. Seria o mesmo que tachar de mentirosos os cientistas
que defenderam a existência do “éter” no espaço e
desconhecer todo o esforço de milhares de outros que
contribuíram para um melhor entendimento do tipicamente humano
em tantas áreas do conhecimento.
E que estranho edifício este da Psicanálise que a
tantos vem beneficiando, se construído sobre mendacidades… E
que belas mentiras estas, que permitiram o avanço da
humanidade na compreensão dos seus mecanismos mentais. Que
Deus tenha feito o mundo em sete dias também é uma
mentira… tomado pelo ponto de vista deste senhores. Mas que lindas
conseqüências o acervo destas e de outras, reunidas em um
Livro, pode gerar. Pode-se acrescentar, quem sabe, que mesmo sobre
isto avançamos e podemos re interpretar como simbólicas
essas “mentiras” o que delas faz outra coisa que não mentiras.
Se todas as “verdades” estão contidas em um único
livro, corremos o risco de que todos os outros sejam ou redundantes
ou deletérios, como já aconteceu em momentos desta
nossa humanidade. Por isto respeito o direito de “pensar diferente”
que todos temos, mas atacar por atacar é apenas tentar obter
um pouco da glória de quem atacamos, como o assassino de
Lincoln pretendia.
Freud é muito mais importante para a ciência em geral do
que apenas para a psicanálise: graças em grande parte a
ele foi possível a mudança paradigmática, vivida
hoje em dia, que rompe com a dicotomia cartesiana entre corpo e mente
e que considera a emoção um impedimento ao
conhecimento. Ele mostrou que, ao contrário, a
emoção é condição para saber, como
aliás vem sendo amplamente demonstrado pelas
neurociências modernas. De modo que, na minha opinião,
Décio não é um mentiroso, apenas se deixou levar
pela ilusão, conduzido ao engano num destes momentos de
obnubilação que nos acomete a todos, a alguns com maior
freqüência.